Discurso do Deputado Ayres de Gouveia, da Câmara dos Deputados, sobre o orçamento do Ministério da Justiça
Lisboa, 3 de Junho de 1863
V. Ex.ª e a câmara sabem por diuturna experiência quão raras vezes tomo a mão nos debates desta casa, e quão pouco tempo me demoro neles.
É que tenho sempre bem gravado na lembrança que cada hora de discussão nesta casa custa perto de 200$000 réis à nação; e que portanto deve ser muito boa a doutrina, e muito útil o fim dela, para que valha a pena do tempo que se gasta na discussão, e para que possa compensar condignamente tão largo sacrifício público.
(...)
Neste capítulo que acaba de abrir-se à discussão aparece um dos mais graves assuntos que podem prender atenção de uma assembleia ilustrada. Trata-se da regeneração do criminoso, da moralização do indivíduo; assunto gravíssimo, e sob todos os aspetos digno da mais desvelada meditação.
É mister que a sociedade se convença que é por meio das escolas dando instrução, por meio das cadeias regenerando o delinquente, por meio do hospital medicando o enfermo, que se pode progredir devidamente, e que se há de atingir um estado social mais perfeito, mais próprio da humanidade. (…)
Proponho que se elimine do orçamento o ofício e o salário do executor. (…)
Odiais o assassinato até ao ponto de matar o assassino; pois eu odeio o homicídio até obstar que vos torne homicida.
(…)
Diz o orçamento:
O cura vence anualmente a quantia de 48$000 réis.
O executor vence anualmente a quantia de 49$000 réis.
Os olhos lêem isto e não acreditam! A razão refoge aterrada e o coração comprime-se de mágoa! Será possível?… É esta a ideia que nós fazemos da morte e do carrasco? (...)
(…)
Não quero nas leis nem uma palavra que possa amanhã fazer cadáveres. As leis devem conter simplesmente palavras úteis, devem ter prescrições que se realizem, e não servirem de espantalho, que não é esse o seu fim racional.
(...)
Ora, pergunto eu, quem é o carrasco? O carrasco é o homem que enforca? É o homem que guilhotina? É o jurado que declara o réu, o malfeitor? É o juiz que lavra a sentença? Não, senhores. O carrasco, digamo-lo com franqueza, somos nós. Não é a corda que enforca, não é a página em que está lançada a sentença, não é a folha de papel em que está escrita a lei. O carrasco é o nosso coração e a nossa cabeça: cabeça e coração de todos nós que estamos aqui. (…)
Sim, somos o carrasco, mas um carrasco cobarde, porque não querendo que o sangue do malditoso nos manche as mãos, entrepomos entre nós e aquele um homem, que ali está involuntariamente, constrangido e coagido, para matar em nosso nome e em nome da sociedade.
Música: "Les Barricades Mystérieuses", de François Couperin, Second livre de pièces de clavecin (1717)