Liturgia, 2023

Devia ter 18 anos quando li a frase do Godard que “um travelling é uma questão de moral”. Na altura bati com a cabeça na parede a tentar perceber o que raio é que isso significa. Dez anos depois sinto que entendo, mesmo que não o saiba propriamente explicar: afinal, parece-me que as músicas deste álbum resultaram de decisões morais. Tive um primeiro vislumbre dessa moral quando comecei a escrever a “Não, este não é o meu primeiro dia”: uma sensação de que esta música não soava bem e que dificilmente alguém teria gosto em ouvi-la, acompanhada de uma sensação de que estava no caminho certo. A minha orientação estética foi sempre mais ditada pelo cinema do que pela música, e os filmes que mais admirava não eram necessariamente aqueles que mais gostava de ver — mas aqueles em que reconhecia uma moral que dificilmente poderia sair da linguagem do cinema e passar para a das palavras. E senti que havia alguma espécie de moral nesta música, na sua recusa de sair de um padrão monótono e auto-gerado — senti-a como um ato de fé, uma procissão sem santuário definido.

Essa espécie de moral foi ganhando contornos práticos nas próximas músicas: afastamento dos compassos tradicionais, simplificação das formas rítmicas, repetição de padrões melódicos simples, cromatismo enquanto base da melodia, do baixo e da variação, uso recorrente de dissonância harmónica, e gravação dos instrumentos todos em simultâneo no mesmo espaço, sem overdubs e com um mínimo de edição e processamento. De algum modo, senti estas práticas como mandamentos.

Não tenho ideia de como este álbum será interpretado, mas gostaria que fosse ouvido como um filme: com olhar atento e disponível. Espero que seja entendido, acima de tudo, como a minha proposta.